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No Ceará, homenagens a Castelo Branco estão espalhadas por ruas, prédios públicos e até empreendimentos privados. — Foto: Justiça Federal/Divulgação
Os nomes estão nas ruas, nas praças e nos prédios públicos. E podem passar em branco no cotidiano da cidade. No entanto, referências à ditadura militar são alvo de reivindicações e debates entre setores que questionam se pessoas que representam um passado de violações e autoritarismo ainda deveriam ser homenageadas.
Em Fortaleza, o espaço inaugurado em 1972 como o Mausoléu Castelo Branco deve ser transformado para retirar a homenagem do Palácio da Abolição, sede do governo do Ceará. O anúncio foi feito na última semana pelo governador do estado, Elmano de Freitas (PT). Uma das possíveis destinações para a estrutura é um lugar de memória para os cearenses abolicionistas, como Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar.
A medida está em sintonia com movimentos de outros países que fazem intervenções em monumentos de figuras ligadas à escravidão, à colonização e ao fascismo, por exemplo.
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Na capital cearense, outros espaços fazem memória a Castelo Branco, um dos articuladores do golpe de 1964 e primeiro presidente do Brasil no período da ditadura.
Intervenções de ‘rebatismo social’ alteraram nomes de ruas de presidente do período militar — Foto: Coletivo Aparecidos Políticos/Divulgação
O Ceará traz várias referências aos militares, não apenas aos que estiveram ligados à ditadura. Combatentes da Guerra do Paraguai, por exemplo, nomeiam ruas e avenidas.
Por ser um dos cearenses que chegou à presidência da República, Castelo Branco ganhou maior proporção nas homenagens, comenta Stella Maris, advogada e membro do coletivo Aparecidos Políticos.
Dentre as atividades, o coletivo fez uma cartografia dos espaços de Fortaleza que homenageiam ditadores, torturadores e pessoas que apoiaram a ditadura cívico-militar no Ceará. Lançado em 2015, o projeto Conexões Cartográficas da Memória listou diversos locais espalhados pela cidade.
Com intervenções artísticas, o grupo costuma fazer atos de ‘rebatismo social’ nestes pontos para levantar discussões sobre quais memórias a cidade preserva sobre o regime militar. Foi o caso das placas colocadas na Avenida Presidente Castelo Branco, que é popularmente chamada de Leste-Oeste.
Locais que permanecem com menção a Castelo Branco:
Uma outra referência na cidade é a Praça Argentina, no Bairro de Fátima. O nome completo do lugar é Praça Argentina Castelo Branco: uma alusão à esposa do ex-presidente. Argentina também teve os restos mortais levados para o mausoléu na década de 1970.
Desde o mapeamento do coletivo, houve algumas mudanças. Uma delas foi a do Auditório Castelo Branco, que ficava no prédio da Reitoria da Universidade Federal do Ceará (UFC). O espaço teve o nome alterado em 2018 na gestão do reitor Henry Campos. Há cinco anos, o auditório leva o nome de Professor Martins Filho, reitor fundador da UFC.
No bairro Montese, duas escolas públicas levam o nome de Castelo Branco — Foto: Google Maps/Reprodução
Outra mudança na última década foi a criação da lei estadual 16.832, sancionada em 2019. O texto proíbe a atribuição a prédios, rodovias, repartições e outros bens públicos em nome de pessoas que aparecem no relatório final da Comissão Nacional da Verdade como responsáveis por violações de direitos humanos.
Como explica Stella Maris, esta legislação vale apenas para impedir novas homenagens. Não prevê, portanto, a mudança em casos que já existiam.
Na prática, as alterações para dar novas denominações a estes espaços precisam acontecer caso a caso, com decisões que podem partir do Executivo ou de discussões na Assembleia Legislativa e na Câmara Municipal.
Foi de uma votação na Câmara que surgiu a nova lei municipal para alterar o nome da Praça 31 de Março, que fazia alusão à data da queda do governo de João Goulart e início da ditadura militar. O espaço, que fica no Bairro Praia do Futuro, passou a se chamar Praça Dom Hélder Câmara em abril de 2013.
Construção do Mausoléu Castelo Branco, ao lado do Palácio da Abolição, sede administrativa do governo do Ceará. — Foto: José Alberto Cabral
A transformação do Mausoléu Castelo Branco em um novo espaço era uma reivindicação constante de grupos que não deixam cair no esquecimento as violações cometidas no regime militar. Por enquanto, existe a expectativa sobre o futuro do monumento.
“A gente defende a manutenção do prédio do ponto de vista arquitetônico. É uma obra importante do modernismo brasileiro, o arquiteto Sérgio Bernardes consta como importante profissional do modernismo. Mas a gente defende, há muitos anos, que ele seja ressignificado. Nós temos poucas informações oficiais sobre os cearenses que foram perseguidos, mortos e os desaparecidos no contexto da ditadura, então a gente defende que seja um espaço dedicado a esses cearenses”, explica Stella Maris.
As mudanças e permanências dos monumentos fazem parte da forma como a sociedade pactua a representação da própria trajetória.
Segundo o historiador Altemar Muniz, professor do curso de História da Universidade Estadual do Ceará (Uece), é necessário que a comunidade sempre volte a discutir sobre o que é aceito, como acredita que deve ser feito no caso de escolas que mantêm nomes de ditadores.
Ele ressalta o simbolismo de honrar vítimas em espaços que já foram nomeados em alusão a eventos e figuras que promoveram violações.
“Os lugares de memória são definidos por uma coletividade em momentos históricos específicos, dependendo de como, no presente, eu olho o passado. Então constantemente nós estamos erigindo estátuas, derrubando estátuas, mudando nome de ruas. Porque eles passam a ter um significado diferente a cada momento histórico. Isso não é fora do comum”, comenta Altemar Muniz.
No entanto, não é fácil chegar a um consenso sobre estas definições, como ressalta o historiador Airton de Farias, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e membro do Grupo de Estudos de História da Ditadura da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Além de entrar em acordo sobre quais elementos do passado não merecem homenagens, existem opiniões ainda divergentes sobre o que fazer com esses objetos de memória.
Mausoléu Castelo Branco, monumento que deve ter nova função para não homenagear mais o primeiro presidente da ditadura. — Foto: Divulgação/Governo do Ceará
Como aponta o historiador, há grupos que acham válidas intervenções como pichações e derrubadas de estátuas, enquanto outros apostam em criar novas estratégias para expor as contradições das figuras ou ideias ali representadas, como colocar em espaços mais reservados ou em locais que permitam reflexões.
“Há quem questione se não seria essa uma medida mais salutar, porque há um risco de você, destruindo esses monumentos, você também acaba com as memórias que indicavam que houve escravismo, que há racismo, que houve ditaduras. Há um risco de as gerações seguintes não terem referências para o que aconteceu no passado de arbitrário e autoritário”, exemplifica.
Como o debate sobre o mausoléu envolve a ditadura militar, é difícil prever um consenso. De acordo com o pesquisador, a transição da ditadura para a democracia veio sem interesse na apuração dos crimes cometidos e buscando evitar crises políticas com os militares.
Com livros publicados sobre o período, Airton de Farias aponta, ainda, que um dos resultados dessa postura foi um desconhecimento geral ou até a negação dos episódios da ditadura, que tem sido retratada de forma estereotipada ou superficial, mesmo nas escolas ou em séries, filmes e novelas.
Conhecer parte dessa história mobilizou a criação do coletivo Aparecidos Políticos, em 2009. Os membros começaram a se organizar após participarem do sepultamento simbólico de Bergson Gurjão, estudante cearense que foi militante político e ficou desaparecido por 37 anos.
Segundo Stella Maris, as articulações do grupo pedem não apenas a remoção das homenagens aos ditadores, mas também a criação de espaços de memória que contem a história das vítimas, que são pouco conhecidas pela população.
No espelho d’água próximo ao Mausoléu Castelo Branco, coletivo fez protestos em memória de perseguidos políticos — Foto: Coletivo Aparecidos Políticos/Divulgação
Outro caminho seria a manutenção de espaços que já existiam, como o memorial ao cearense frei Tito de Alencar que ficava no Museu do Ceará, equipamento público fechado para reforma desde 2019. A advogada ressalta que o espaço foi o primeiro memorial público do Brasil dedicado a uma vítima da ditadura.
Pensando no currículo escolar, o historiador Altemar Muniz avalia que os jovens têm tido poucas oportunidades de interagir, de forma mais próxima e reflexiva, com a história contemporânea e com os fatos recentes da própria cidade e do próprio estado.
Falando sobre como o Brasil lidou com a memória da ditadura, o pesquisador aponta que o país poderia criar uma data para celebrar a democracia. Uma ideia seria o dia 5 de outubro, data da promulgação da Constituição de 1988.
“Eu acho que a gente está precisando uma data onde meios de comunicação, escolas… Eles possam parar e pensar o que significa aquele momento (de retorno à democracia) e por que preservar a democracia”, conclui.
Para ele, a proposta seria diferente do patriotismo vinculado aos setores militares, característica que o Dia da Independência, no dia 7 de setembro, foi adquirindo principalmente durante a ditadura militar brasileira.
o Ceará no g1