Preencha os campos abaixo para submeter seu pedido de música:
Profetas da chuva se encontram em Quixadá para apresentar previsão do tempo com base em interpretação de elementos da natureza — Foto: Alex Pimentel/SVM
Oficialmente, os meses de chuva no Ceará não são chamados de inverno. Mas inverno é palavra entranhada no coração e na fala do sertanejo. Ela se destaca também nos versos de Patativa do Assaré, que cantou sobre uma terra marcada pelas grandes secas. De tão desejado, o período passou a ser também profetizado pelos agricultores que se atentam aos sinais da natureza.
Os profetas da chuva observam diversos elementos que podem anunciar a chegada das chuvas: as formigas, as borboletas, os ventos, algumas aves e plantas.
Há 28 anos, eles se reúnem na cidade de Quixadá para partilhar previsões para a próxima quadra chuvosa. O Encontro dos Profetas da Chuva é realizado no segundo sábado de janeiro. No evento, os profetas são inicialmente recebidos com aplausos, em momento de reverência às tradições que eles preservam.
Neste ano, o evento acontece no dia 13 de janeiro a partir das 9h, na sede do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFCE) Campus Quixadá.
O encontro é uma forma de perpetuar o costume de se encontrar nas casas dos fazendeiros para prever o ciclo seguinte de chuvas, explica o profeta João Soares, que é um dos organizadores. O grupo que tem se reunido nos últimos anos conta com as experiências de quase 30 profetas da chuva.
Experiência das pedras de sal é feita pelos profetas da chuva no dia de Santa Luzia, em dezembro — Foto: Secretaria de Cultura de Quixadá/Divulgação
“O momento é de mostrar as experiências que aprendemos com os nossos avôs, nossos pais, com as pessoas mais antigas. E estes profetas estão trazendo as mesmas experiências dos antigos”, conta João Soares.
Aos 83 anos, João mora em Quixadá e costuma fazer duas experiências para identificar se vai chover no ano seguinte. Uma é a experiência com a água abaixo da fogueira de São João, ainda no período junino. A outra é com as pedras de sal no dia dedicado a Santa Luzia.
Sertanejos cearense apreenderam a ‘ler’ sinais da natureza que indicam se haverá ou não chuva — Foto: TV Globo/Reprodução
Conheça alguns sinais observados pelos profetas da chuva:
Além dos moradores de Quixadá, o encontro recebe também profetas de outras regiões, como do Maciço de Baturité e do Sertão dos Inhamuns.
A programação cultural com o tema dos profetas da chuva vai até o mês de junho, com seminário, exibição de filmes e shows musicais, com eventos promovidos pela Prefeitura de Quixadá e diversos parceiros, como o Ministério da Cultura e o Instituto de Pesquisa de Violas e Poesia Cultural Popular do Sertão Central.
A tradição popular de profetizar as chuvas no Sertão vem de uma intimidade do homem com a natureza — Foto: Secretaria de Cultura de Quixadá/Divulgação
O calendário cultural do Sertão Central é iniciado com o encontro dos profetas. As experiências trazidas pelos participantes, que construíram uma relação mais íntima com os ciclos da natureza, vêm de uma tradição secular e que pode se enfraquecer pelo desinteresse das novas gerações, comenta Clébio Viriato Ribeiro, secretário da Cultura em Quixadá.
“É uma resistência manter viva essa tradição, é um grande acontecimento porque reúne todos esses mestres. Estes agricultores são mestres e têm um conhecimento riquíssimo em observar a natureza e tantos elementos desse universo cultural. Esses senhores e essas senhoras observam para dar sua previsão de que vai chover ou não. E eu acho que eles acertam sempre”, afirma Clébio.
O secretário aponta que existe uma diferença sobre o que é um ‘bom inverno’ para os pequenos agricultores em comparação com os prognósticos dos cientistas e meteorologistas.
Enquanto os gestores dos recursos hídricos trazem um olhar abrangente para a segurança do abastecimento e o aporte nos grandes reservatórios, os profetas da chuva representam a perspectiva do pequeno agricultor que busca sobreviver no semiárido.
“Para o homem do campo, [o bom inverno] é aquele período em que chove e o agricultor tem como plantar no momento correto para esperar a outra chuva e fazer o plantio. É muito concentrado na sua localidade”, contextualiza Clébio.
O encontro dos profetas é o momento em que eles trazem o que observaram e falam de suas experiências. O momento é pautado pelos relatos de quem carrega ensinamentos dos seus ancestrais. Ao final, eles escrevem uma ata com o prognóstico dos profetas.
O secretário explica que a previsão final, coletando todos os relatos, resulta de aspectos imateriais. “A gente não está falando de ciência. A gente está falando de cultura popular, de oralidade, de observação”, enfatiza.
Na cerimônia, os participantes vão além das previsões do tempo. Cantam, recitam poemas, partilham anedotas e perpetuam entre si a oralidade e a poética dos homens e das mulheres do sertão.
Na família de Meyrismar Nobre, o pai, a avó e o bisavô foram profetas da chuva no sertão cearense — Foto: Reprodução
Depois que a profetiza da chuva Francisca Nobre faleceu, em 2010, o lugar deixado por ela nos encontros anuais de Quixadá passou a ser ocupado pela neta. A administradora Meyrismar Nobre, aos 43 anos, se orgulha por ter comparecido a quase todas as reuniões desde então.
A satisfação é por dar continuidade ao legado da avó. O aprendizado começou quando Meyrismar ainda tinha cinco anos e estava com a família paterna em Barra do Sitiá, distrito da cidade de Banabuiú. Em uma noite de céu bastante estrelado, ela escutou o que a avó Francisca contava sobre os astros para Erismá, que é pai de Meyrismar e também se tornou profeta da chuva.
“Era aquele céu bem iluminado, aquele clarão que você só vê no sertão. Ela mostrou o ‘caminho de Nossa Senhora’, a ‘barca de Noé’… Ela falou sobre os astros, o que as estrelas significavam e qual era a função de cada uma na previsão. O meu avô era agricultor, ela era dona de casa. E o pai dela era quem fazia as previsões, o meu bisavô. Então isso vem de muito longe”, recorda Meyrismar.
Atualmente, ela se dedica à criação dos três filhos: Lucas e os gêmeos Marcos e Maria Flor. Mesmo não morando na zona rural, ela busca despertar nos pequenos o interesse pelos elementos da natureza. Para Lucas, a mãe já andou ensinando sobre a constelação que aprendeu a chamar de Barca de Noé.
Embora tenha começado a se interessar pelas previsões com base nos astros, Meyrismar participa dos encontros dos profetas para falar de uma observação que a avó trazia nos últimos anos: a floração do flamboyant, árvore de origem africana e muito comum no Brasil. Se ele começa a florescer cedo, é sinal de que as chuvas vão ser boas assim que o ano começa.
“Eu começo a olhar no mês de junho já. Olho onde é que tem flamboyant, se ele está aflorando todo, se está mais pro norte ou pro sul, se as flores dele estão acompanhando toda a árvore. Tem um que estou acompanhando que está aflorando mais para o norte. Quando é assim, vai estar mais variado, vai ter locais com chuvas e outros não”, comenta a profetiza.
Outro aspecto que ela e o pai costumam observar é o feijão bravo, ajudando a prever quais colheitas serão boas durante os meses da quadra chuvosa.
Erasmo Barreira também é um dos profetas que continua uma tradição familiar. Foi o pai que o ensinou a observar os vários sinais da natureza que podem indicar a chegada das chuvas, como a floração de espécie de plantas, as características do feijão bravo e até mesmo a reprodução de alguns animais.
“Ao lado do meu pai, eu aprendi isso e vou levar isso enquanto alguém me ouvir”, garante o profeta. Ele se coloca na posição de aprendiz ao enxergar que os bichos e as plantas têm uma sabedoria própria e se preparam para um período chuvoso.
“No meu ponto de vista, no que eu acompanhei, o que a natureza me explicou e eu entendi é que vamos ter um grande inverno agora em 2024. Um inverno que talvez supere esse de 2023”, afirma Erasmo.
Como profeta da chuva no sertão, Erasmo Barreira aprendeu com o pai a observar os sinais da natureza — Foto: Secretaria de Cultura de Quixadá/Divulgação
Além de basear esta afirmação no que tem observado nas plantas e nos animais, Erasmo também fala do vento ‘aracati’, que rendeu mais noites frescas no mês de dezembro e traz esperanças de uma boa quadra chuvosa.
Prestar atenção nos ventos é também o que faz José Célio de Assis. Aos 95 anos, ele faz questão de sair de Limoeiro do Norte, onde mora, para ir a Quixadá se encontrar com os profetas da chuva. Ele levou a vida se dedicando à agricultura, plantando milho, feijão, arroz, bananas e jerimum (abóbora).
Ele gosta de se identificar como admirador da natureza e observador das chuvas, com hábitos que aprendeu com um primo do pai. Há cerca de 18 anos, descobriu o encontro dos profetas e se sempre se prepara para partilhar o que sabe. Na memória, estão as próprias experiências e o que também ouviu do pai sobre a lida com a terra.
Morador de Limoeiro do Norte, Célio de Assis faz questão de ir a Quixadá para o encontro dos profetas da chuva — Foto: Thaís Brito/g1 Ceará
Para 2024, ele prevê um bom inverno que vai marcar o centenário de um ano de chuvas abundantes no Ceará. O pai de Célio tinha 34 anos quando veio a quadra chuvosa de 1924. “Choveu tanto, que os jaburus se desorientaram do seu habitat, que é o Pará e o Maranhão, e vieram parar no Baixo Jaguaribe”, conta o profeta.
Nos encontros dos profetas, José Célio costuma levar também o ninho do pássaro boé, também conhecido como iraúna-de-bico-branco. O ninho também é observado por ele para a previsão das chuvas. As borboletas também simbolizam a esperança no sertão. Segundo o profeta, é possível ver grandes borboletas pretas quando as chuvas se aproximam.
O ninho do pássaro boé também é observado pelos profetas da chuva no Ceará — Foto: Secretaria de Cultura de Quixadá/Divulgação
Para ele, os sons também são importantes. José Célio explica que é possível perceber um eco diferente na natureza durante dois ou três dias antes de chover.
“O que é o eco? Eu estou aqui deitado e escuto o animal rinchando a dois quilômetros. É sinal de que vai chover. O tempo se fecha, faz calor, as nuvens ficam lá paradas e fazem uma ‘concha acústica’. São as coisas divinas da natureza de Deus”, comenta.
Ele conta que identificar esse eco já foi importante quando ele topou comprar feijões que estavam prestes a murchar, sabendo que a chuva viria a tempo de fazer o plantio na terra.
Atualmente, José Célio percebe, pelo contato direto e pelas notícias, condições muito diferentes na natureza. Como a seca no rio Negro, na região amazônica. Ou os extremos de calor e os fenômenos de tromba d’água, que ocorrem em locais com fortes pancadas de chuva.
O açude Cedro, na cidade de Quixadá, é um dos reservatórios de água mais antigos do Brasil — Foto: Secretaria de Cultura de Quixadá/Divulgação
Ainda em novembro de 2023, o cenário de uma possível seca para este ano foi anunciado pela Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme).
Com a previsão meteorológica, a Fundação apresentou gráficos que mostraram um aumento na temperatura do oceano, causando o fenômeno conhecido por El Niño. O anúncio foi de que o estado não tem possibilidade de boa quadra chuvosa para 2024, enfrentando desafios para que o Ceará tenha bons aportes de água.
O momento foi também de estimar que, partindo do cenário mais crítico, o estado pode chegar ao fim da quadra chuvosa (em maio) com menos de 30% da capacidade dos reservatórios de água. O volume total armazenado no início de 2024 foi de 38,5% da capacidade.
Por Thaís Brito, g1 CE