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Maior mina de urânio do Brasil promete empregos, mas especialistas apontam risco de contaminação

Contaminação das águas, chuva ácida e até casos de câncer são apontados entre os riscos da mineração. Consórcio responsável pelo projeto afirma que estudos complementares solicitados pelo Ibama devem ser apresentados ainda em 2023.

Mina em Santa Quitéria, no Ceará, pode ser usada para extração de urânio e fosfato caso empreendimento seja aprovado — Foto: Arquivo SVM

Mina em Santa Quitéria, no Ceará, pode ser usada para extração de urânio e fosfato caso empreendimento seja aprovado — Foto: Arquivo SVM

A mineração da maior reserva de urânio do país é uma promessa e uma polêmica no Ceará. Com potencial de produção de energia e fertilizantes, a ideia conta com o apoio de gestores estaduais. No entanto, o projeto Santa Quitéria desperta questionamentos de comunidades e pesquisadores, que apontam riscos catastróficos para o meio ambiente e a vida da população.

A proposta é explorar a jazida situada na fazenda Itataia, que fica entre os municípios de Santa Quitéria e Itatira, a cerca de 210 quilômetros de Fortaleza. O concentrado de urânio e o fertilizante fosfatado seriam os produtos finais. Até agora, as tentativas de licenciamento para lavra e beneficiamento de minério não tiveram sucesso.

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Em dezembro de 2022, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) não foi aprovado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), que solicitou informações complementares apontando que os dados apresentados eram insuficientes em alguns pontos, como sustentabilidade ambiental do empreendimento e invisibilidade de populações e comunidades tradicionais da região.

Esta etapa é normal em grandes projetos, e os estudos complementares solicitados devem ser apresentados ao Ibama até o fim de 2023, afirma Christiano Brandão, gerente corporativo de licenciamento e meio ambiente da Galvani Fertilizantes, empresa integrante do Consórcio Santa Quitéria.

A partir desta nova fase, ele explica que foi possível aprofundar as informações coletadas para um melhor desenho do projeto.

Além dos trâmites para licenciamento ambiental junto ao Ibama, o empreendimento também está com licenciamento nuclear atualmente sob análise na Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). Para a fase de implantação, o projeto Santa Quitéria prevê um investimento de R$ 2,3 bilhões.

Em setembro deste ano, o governo do Ceará deu mais um passo no apoio ao empreendimento. Foi a renovação do memorando de entendimento com o consórcio Santa Quitéria, formado pela empresa pública Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e com a Galvani Fertilizantes, do setor privado.

No documento publicado no Diário Oficial do Estado, o governador Elmano de Freitas (PT) e vários secretários estaduais assinaram compromisso, válido pelos próximos cinco anos, em cooperar para a implantação do projeto. Também assinaram representantes das pastas do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos.

A renovação foi recebida com preocupação pelas pessoas que se opõem ao projeto. Não renovar o memorando era uma das recomendações de relatório divulgado há um ano pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH). O documento indica uma série de violações aos direitos das populações do entorno caso a usina seja implantada.

Como funcionará a usina

Projeto prevê etapas de mineração a céu aberto e separação do fosfato do urânio na jazida de Itataia, no Ceará — Foto: Consórcio Santa Quitéria/Reprodução

Projeto prevê etapas de mineração a céu aberto e separação do fosfato do urânio na jazida de Itataia, no Ceará — Foto: Consórcio Santa Quitéria/Reprodução

O mineral encontrado na jazida de Itataia é o colofanito, que traz o fosfato e o urânio juntos. A operação prevista para explorar a mina inclui várias fases, que resultam na produção do concentrado de urânio e de fertilizantes fosfatados.

As principais etapas de produção:

  • Mineração a céu aberto: as rochas com urânio e fosfato são retiradas, britadas e moídas.
  • Calcinação: nesta etapa, os minerais são separados, resultando no concentrado de rocha fosfática.
  • Produção do ácido fosfórico: o concentrado de rocha fosfática é misturado com água e ácido sulfúrico, produzido em uma unidade industrial instalada no complexo. Nesta fase, são obtidos fosfogesso e cal, que serão estocados na pilha de rejeitos.
  • Purificação do ácido fosfórico: o urânio e o fosfato são integralmente separados no sistema de extração por solventes. Os dois produtos desta fase são o licor de urânio e o ácido fosfórico sem urânio.
  • Produção do concentrado de urânio: na instalação de urânio, o licor é transformado em uma pasta e, em seguida, vira um pó amarelo (também conhecido como “yellow cake”). Este concentrado de urânio é armazenado em tambores e transportado para o Porto do Pecém, de onde será exportado para outro país. De volta ao Brasil, o material será levado para a fábrica da INB no Rio de Janeiro e transformado em pastilhas e combustíveis nucleares, que servirão para gerar energia nas usinas nucleares de Angra dos Reis.
  • Fabricação de fertilizantes: com o ácido fosfórico, serão fabricados em Santa Quitéria adubos fosfatados para a agricultura e fosfato bicálcico, componente essencial para rações e suplementos para animais. Os produtos se destinam a produtores do Norte e Nordeste do país.
  • Pilhas de rejeitos: a estação a seco, com fosfogesso e cal, foi uma mudança no projeto para eliminar as barragens de rejeitos.

A estimativa é de produzir anualmente: 1,05 milhão de toneladas de fertilizantes fosfatados, 220 mil toneladas de fosfato bicálcico e 2,3 mil toneladas de concentrado de urânio.

Por parte do projeto, a expectativa é obter a licença de instalação até o fim de 2024. As obras de instalação devem durar dois anos e meio. Neste cenário e com a licença de operação aprovada, a usina poderia começar a produzir entre o fim de 2027 e o começo de 2028. A proposta é de explorar a jazida por 20 anos.

Especialistas apontam impactos que chegam até Fortaleza

Mapeamento formado por pesquisadores aponta impactos da mineração que alcançam mais de 4 milhões de pessoas — Foto: Articulação Antinuclear/Reprodução

Mapeamento formado por pesquisadores aponta impactos da mineração que alcançam mais de 4 milhões de pessoas — Foto: Articulação Antinuclear/Reprodução

O risco de desastres graves no território cearense abrange uma população estimada de 4,5 milhões de pessoas, que poderiam ser atingidas de forma direta ou indireta. O cálculo vem do mapa construído coletivamente por pesquisadores da Articulação Antinuclear, que reuniu aspectos sociais e ambientais para produzir informações sobre os riscos potenciais do projeto.

Esta estimativa inclui 2,6 milhões de habitantes em Fortaleza, que entra como local possivelmente impactado em casos de acidentes no transporte dos materiais radioativos para os portos do Pecém e do Mucuripe. Nas zonas de impactos pelo Ceará, foram mapeados 28 povos indígenas e 16 comunidades quilombolas.

Alguns apontados pela Articulação Antinuclear:

  • Acidentes no carregamento de urânio e fosfato pelas rodovias estaduais e federais com destino aos portos do Pecém (São Gonçalo do Amarante) e Mucuripe (Fortaleza).
  • Escoamento superficial e infiltração nas águas subterrâneas da bacia hidrográfica do rio Acaraú a partir das pilhas de rejeito ou das poeiras produzidas nas fases de lavra e industrialização.
  • Contaminação do rio Groaíras, que passa ao lado da mina e corre até o rio Acaraú, com águas que chegam à cidade de Sobral e vão até o litoral.
  • Prejuízos para a economia regional relacionada à produção e comércio de alimentos agroecológicos.
  • Dispersão de pluma de contaminação do gás radônio pelos ventos de nordeste, leste e sudeste. Isto pode chegar até a região da Ibiapaba e até avançar pela fronteira com o Piauí.
  • Elevada toxicidade para os seres humanos e efeitos biológicos causados pelo contato com metais pesados e poeira provocada pela extração de rochas ornamentais e brita.

Um dos pesquisadores à frente da elaboração do mapa, divulgado em 2021, é Jeovah Meireles, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Segundo elenca, um exemplo já conhecido é o da mineração de urânio em Caetité, na Bahia.

Além de análises que apontam níveis de contaminação muito acima do índice nas águas de cacimbas da região, ele aponta que os compradores de alimentos nas feiras tiveram medo de consumir produtos de Caetité, um estigma que ameaçou o sustento das comunidades locais.

“Essa energia (nuclear) é tremendamente complicada. No Ceará, o que estaria ali sendo explorado é um mineral que vai gerar uma sequência bastante complexa de danos sociais, ambientais, de injustiça hídrica, injustiça climática e racismo ambiental, que são categorias analíticas que nós utilizamos na elaboração dos diagnósticos e pareceres”, analisa Jeovah Meireles.

Na avaliação de impactos do consórcio, não há estimativa da população que poderia ser afetada ou perspectivas de danos maiores aos moradores da região.

Conforme Christiano Brandão, existe uma alta margem de segurança porque o empreendimento está restrito a uma área de 8% do espaço da Fazenda Itataia. Portanto, a análise de possíveis incidentes não extrapola essa região.

Com o aprofundamento dos estudos a pedido do Ibama, o consórcio afirma que não conseguiu identificar a presença de povos tradicionais na área do empreendimento, restrita ao espaço da fazenda. A inclusão deste componente virá nas informações complementares produzidas pelo projeto.

De acordo com Christiano, as comunidades mais próximas ao empreendimento ficam a mais de 25 quilômetros de distância.

“Existe entre a área do empreendimento e esses aldeamentos uma cadeia de montanhas e de morros que, por si só, já são uma barreira física entre essa área do empreendimento e essas comunidades. O segundo ponto é que o empreendimento está em outra bacia (hidrográfica), então não existe qualquer tipo de conexão, do ponto de vista hídrico, com essas comunidades”, explica Christiano.

Ainda conforme com o gerente, chegar até as comunidades mais próximas é tarefa que leva cerca de cinco horas de deslocamento.

A disputa pela água no semiárido

Moradores e comunidades do entorno convivem com escassez hídrica no semiárido — Foto: Luís Santos/Arquivo Pessoal

Moradores e comunidades do entorno convivem com escassez hídrica no semiárido — Foto: Luís Santos/Arquivo Pessoal

O abastecimento de água para a usina é um dos pontos que despertam a preocupação dos críticos ao projeto, principalmente pelo uso de um recurso natural escasso no semiárido.

Garantir água para o projeto é um dos compromissos firmados pelo governo estadual no memorando de entendimento com o consórcio. Em outorga preventiva aprovada em 2021, a Secretaria dos Recursos Hídricos (SRH) declarou a disponibilidade de água do açude Edson Queiroz para o projeto Santa Quitéria.

A mesma pasta também previu o projeto de adutora para levar a água do açude até a região por uma tubulação de quase 63 quilômetros, atendendo ao projeto de mineração e às comunidades rurais de Riacho das Pedras, Assentamento Morrinhos e Assentamento Queimadas. A construção ainda não foi iniciada.

De acordo com Christiano Brandão, o volume a ser destinado para o empreendimento é de 9,75% da capacidade total do açude. Ele detalha que 20% do volume do açude são garantidos para outros consumos, como abastecimento da população e agricultura. E que o reservatório ainda fica com cerca de 75% de volume livre para outros usos.

Sem concordar com a instalação da usina, a agricultora Patrícia Gomes, de 31 anos, questiona como o governo garante abastecimento para o projeto no futuro sem cuidar da população do Assentamento Queimadas no presente. Ela explica que a comunidade fica a cerca de 4 quilômetros da jazida de Itataia.

“Para nós, sequer chega um carro-pipa. Estamos localizados no semiárido, no sertão sem água, sem recursos hídricos. A nossa produção é difícil porque nós não temos acesso à água. Em contrapartida, nós temos um governo que garante água para o empreendimento que vai matar a nossa fauna e o nosso bioma, que é a nossa caatinga”, destaca.

Vinculado à UFC, o Núcleo TRAMAS vem acompanhando o tema desde 2010 a pedido da Cáritas Diocesana de Sobral, que identificou a preocupação de moradores de Santa Quitéria e Itatira. Na análise do grupo, o abastecimento da mineração aumentaria em 400% a demanda sobre o açude Edson Queiroz.

Lívia Dias, graduada em Ciências Biológicas e mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente, é uma das pesquisadoras do TRAMAS e acompanha o tema de perto. Conforme explana, a inviabilidade hídrica foi determinante para que o Ibama negasse a licença ambiental do empreendimento em 2019.

“É um projeto de custo bilionário, que prevê a utilização de grandes volumes de água para a mineração, em pleno do sertão do Ceará, onde existem comunidades inteiras na zona rural que ainda enfrentam dificuldades em ter seu direito de acesso à água garantido pelo Estado. É um projeto com potencial de impacto sobre o ambiente, a saúde e à vida de comunidades de agricultores, povos indígenas, comunidades tradicionais de pescadores, de povos de terreiro, de quilombolas, e também de pequenos e grandes centros urbanos”, comenta Lívia.

A dificuldade para ter água foi testemunhada por Virginia Berriel, conselheira e integrante da mesa diretora do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), quando veio em missão ao Ceará para a produção de relatório sobre o projeto em 2022. Em uma tarde, ela conversou com membros das comunidades na escola do assentamento Morrinhos.

“Ali não tem água, não chega… Os pratos, a alimentação ali era feita com dois baldes de água. Você poderia abrir as torneiras da escola, a água não estava ali nas torneiras nem nos banheiros. Então aquela população demanda água que é ou de poços artesianos ou de carro-pipa que vem do açude de onde querem retirar água para o empreendimento. É algo inimaginável”, conclui a conselheira.

Dentre as recomendações do relatório produzido pelo CNDH, o conselho recomendava à SRH que fizesse uma avaliação dos riscos de comprometimento do Projeto Santa Quitéria para o fornecimento de água de açude próximo e para as águas subterrâneas do entorno. Ao g1, Virginia Berriel informou que esta resposta nunca chegou ao conselho.

Medo de colapso ou contaminação

Próximo à futura usina, o assentamento Morrinhos é abastecido com cisternas e tem produção de alimentos e criação de animais — Foto: Luís Santos/Arquivo Pessoal

Próximo à futura usina, o assentamento Morrinhos é abastecido com cisternas e tem produção de alimentos e criação de animais — Foto: Luís Santos/Arquivo Pessoal

A promessa de mineração na área traz outros temores em relação à água. No assentamento Morrinhos, existem hoje 52 famílias que sobrevivem da agricultura familiar, em um território a cerca de 5 quilômetros de onde será a usina. Elas costumam armazenar água com as cisternas de placa, como explica Luís Paulo Santos, que atua como professor no assentamento.

Estas cisternas recebem as águas das chuvas que escoam dos telhados das casas. Por isso, o risco de dispersão de uma pluma de contaminação gera medo entre eles.

“Como a gente mora muito próximo e a favor do vento, com certeza essa poeira radioativa vai vir para cima do nosso telhado. Já não é fácil conviver com essa questão do semiárido, da dificuldade hídrica. E a pouca água que temos ainda pode vir a ser contaminada”, comenta o professor.

Convivendo com os períodos de seca, Luís vê com desconfiança os conflitos pela água do reservatório no futuro. Ele afirma que o interesse do poder público em trazer uma adutora e abrir caminhos para a mineração indica que as comunidades locais não estão no centro das decisões.

“E se vier a faltar água, que é muito comum aqui na nossa região, com certeza a prioridade não vai ser as populações. Com certeza, vai ser o consórcio”, considera.

Outro destaque trazido pela pesquisadora Lívia Dias é o cenário de mudanças climáticas. Nesse contexto, o Ceará deve enfrentar mais eventos extremos, com chuvas mais irregulares e elevação das temperaturas. Como aponta, isso já é desafio suficiente para a gestão das águas, que deve priorizar o consumo humano e dos animais.

De acordo com Christiano Brandão, representando o consórcio, não haverá competição pelo uso da água da região. Ele explica que as legislações vigentes para outorga dos recursos hídricos deixam clara a prioridade para abastecimento das pessoas e dos animais. E que, em casos de escassez extrema, a operação da mina será sacrificada para não prejudicar os outros usos da água.

Como detalha, a eliminação das barragens de rejeito foi uma mudança no projeto que diminuirá o uso da água. O desenho atual prevê pilhas de rejeitos com fosfogesso e cal, evitando descartar água para o meio ambiente e evitando riscos de contaminação.

Pesquisadores e membros das comunidades já conhecem a nova proposta da pilha de rejeitos, mas argumentam, ainda assim, que a medida não é suficiente para eliminar os perigos de contaminação e colapso hídrico.

Possíveis efeitos da radiação

Galerias que já haviam sido abertas na jazida de urânio e fosfato de Itataia — Foto: Relatório da Missão Santa Quitéria-CE/CNDH/Reprodução

Galerias que já haviam sido abertas na jazida de urânio e fosfato de Itataia — Foto: Relatório da Missão Santa Quitéria-CE/CNDH/Reprodução

O contato com o urânio, metal pesado e instável, traz riscos reconhecidos pela comunidade científica. Especialistas apontam possíveis impactos para as pessoas e também para a biodiversidade.

Casos de câncer e más formações congênitas, não apenas nos humanos, estão associados à exposição aos elementos que estão na cadeia de decaimento do urânio, também chamados de ‘filhos do urânio’ na explicação de Raquel Rigotto, professora aposentada da Faculdade de Medicina da UFC e coordenadora do TRAMAS.

Um desses elementos é o gás radônio, que é incolor e pode viajar quilômetros pela ação dos ventos sem ser percebido. Ela explica que, no caso de Santa Quitéria, as fases de mineração a céu aberto trazem este risco de dispersão.

Na região, existe a percepção de que o número de casos de câncer é mais elevado. Isso porque parte dos moradores atuou na abertura de três galerias subterrâneas na jazida nas décadas de 1970 e 1980, além de outras estruturas, como uma pequena barragem e um campo de aviação.

A agricultora Patrícia Gomes traz esse relato na família. O pai trabalhou diretamente na mina e morreu de câncer do cólon. A mãe, que ainda era solteira à época das primeiras explorações, era a lavadeira das roupas dos trabalhadores da mina. Em 2019, foi diagnosticada com câncer no estômago.

“Eu tenho esses casos bem perto: meu pai e minha mãe. E também tenho conhecimento de trabalhadores que ali trabalharam também pelo mesmo período e que já morreram também de câncer”, afirma a agricultora.

Um estudo epidemiológico sobre as mortes por neoplasia em Santa Quitéria foi outra recomendação do relatório do CNDH para o Governo do Ceará. Conforme a conselheira Virginia Berriel, esse retorno também não chegou ao conselho.

Um projeto de pesquisa semelhante está sendo iniciado pelo TRAMAS, como afirma Raquel Rigotto. Em contato com alguns dos moradores que já atuaram na jazida no passado, apareceram relatos de pessoas que trabalharam diretamente com os materiais radioativos sem equipamentos de segurança.

“Já encontramos alguns casos de ex-trabalhadores das empresas, mas estamos tendo dificuldades de localizar os trabalhadores porque o trabalho de sondagem e prospecção entre os anos de 1976 e 1996, foram realizados por pelo menos cinco empresas terceirizadas. Então nós não estamos encontrando muitos meios de localizar essas pessoas porque não há registros”, contextualiza Raquel.

Segundo a pesquisadora, a experiência de mineração de urânio em outros países, como África do Sul, Canadá e Alemanha, traz os dados epidemiológicos que apontam maior prevalência de câncer nas populações do entorno.

Missão do Conselho de Direitos Humanos em Santa Quitéria reuniu representantes de povos indígenas da região — Foto: Relatório da Missão Santa Quitéria-CE/CNDH/Reprodução

Missão do Conselho de Direitos Humanos em Santa Quitéria reuniu representantes de povos indígenas da região — Foto: Relatório da Missão Santa Quitéria-CE/CNDH/Reprodução

Nos municípios de Monsenhor Tabosa, Tamboril e Boa Viagem, 28 aldeias e 930 famílias reivindicam o reconhecimento da Terra Indígena Serra das Matas. Por lá, a promessa de instalação da usina também causa preocupação.

Além de reclamar por não terem sido consultados por estarem em municípios próximos, os povos da região temem pela contaminação e alteração dos seus modos de vida, explica Teka Potiguara, liderança da aldeia Mundo Novo e líder do movimento Potygatapuia (inclui os povos Potiguara, Tabajara, Gavião e Tapuia).

“O mal que vai nos fazer é nos matar pelo veneno, matar a nossa terra, os animais da mata, pois nós temos bastante para a caça… Vai morrer tudo através do vento e através da água”, comenta Teka.

Também entre os povos da Serra das Matas, a água chega por meio de carros-pipa para a maioria das famílias.

Dentre outros possíveis impactos da mineração em Santa Quitéria, a pesquisadora Lívia Dias destaca:

  • Perda de biodiversidade, incluindo risco para espécies endêmicas e em risco de extinção
  • Poluição do ar, do solo e das águas
  • Formação de chuva ácida (chuva com componentes ácidos e prejudiciais ao meio ambiente)
  • Contribuição com as mudanças climáticas pela introdução de fontes de emissão de gases do efeito estufa

Outra preocupação é da produção do fosfato nas instalações do complexo. Caso não seja possível separar totalmente o urânio das rochas originais, estes produtos que vão para a agricultura e a pecuária podem ter radiação com efeitos cumulativos sobre quem consome, explica o pesquisador Jeovah Meireles.

Segundo Christiano Brandão, esta preocupação é comum em plantas de fertilizantes. Ele afirma que o consórcio já testou um processo em uma planta piloto para a separação do fosfato e do urânio, comprovando 100% de eficácia e geração de um dos produtos mais limpos do mercado. Outro aspecto é que o material precisa ser analisado pelo Ministério da Agricultura.

“Esse controle é feito de forma absolutamente rigorosa, e a tecnologia se mostrou extremamente eficaz. Então a gente não tem nenhum tipo de receio e não colocaria um produto no mercado que foge a esse nível de qualidade e de controle”, comenta Christiano.

Como também ressalta o gerente, o projeto contempla os sistemas de controle e monitoramentos necessários para toda a operação do complexo, pois as atividades estarão submetidas às legislações e regulamentações vigentes no país.

O gerente também destaca que o diálogo com as comunidades foi intensificado a partir de abril de 2022, com a abertura de escritórios do projeto em Lagoa do Mato (Itatira) e Santa Quitéria.

A intenção do consórcio é estar disponível para tirar dúvidas, repassar informações e compreender as necessidades locais para a formulação de projetos sociais e formas de contribuir com a economia local no futuro.

Perspectivas para a economia nacional e local

O urânio extraído no Ceará poderá abastecer a produção de energia nas usinas nucleares Angra 1 e Angra 2.  — Foto: Divulgação/Eletronuclear

O urânio extraído no Ceará poderá abastecer a produção de energia nas usinas nucleares Angra 1 e Angra 2. — Foto: Divulgação/Eletronuclear

Sendo um dos maiores produtores de alimentos do mundo, o Brasil importa atualmente cerca de 85% dos fertilizantes, como explica Christiano Brandão. Desta forma, a produção a partir da jazida de Itataia busca trazer mais autonomia para o país.

Com o urânio, ele detalha que o Brasil também utiliza urânio para a operação das usinas nucleares Angra 1 e Angra 2. A produção do Ceará supriria essa necessidade e até chegaria a possibilitar a operação da usina Angra 3, que está em construção desde 1981.

As estimativas de produção do Consórcio Santa Quitéria:

  • 1,05 milhão de toneladas de fertilizantes fosfatados, suprindo 25% da demanda do Norte e Nordeste.
  • 220 mil toneladas de fosfatado bicálcico, atendendo 50% da demanda do Norte e Nordeste.
  • 2,3 mil toneladas de concentrado de urânio, eliminando a necessidade de importação e trazendo possibilidade de exportação.

Além das projeções para a produção de fertilizantes e geração de energia no país, o projeto estima também os efeitos da operação na economia local.

Para a região, devem ser gerados 2,8 mil empregos diretos e 5,6 mil empregos diretos na fase de construção do complexo. Quando ele estiver em operação, a previsão é de 538 empregos diretos e 2,3 mil postos de trabalho indiretos.

“É difícil achar uma profissão que não seja necessária nesse tipo de empreendimento. Existem empregos de toda ordem, desde funções mais operacionais mesmo, com máquinas, construções de estruturas e montagem, às demais profissões: engenharia, arquitetura, medicina, enfermagem, segurança de trabalho, administração… É uma gama muito grande de profissionais envolvidos”, detalha Christiano.

Segundo o gerente, o objetivo é o usar o maior volume possível de mão-de-obra local. Mesmo sendo uma região sem muitas atividades de mineração, a aposta é nas formações técnicas em articulação com o poder público.

A promessa de empregos na região não é suficiente para que o professor Luís Paulo Santos, do assentamento Morrinhos, seja a favor do projeto. Ele ressalta que as comunidades do entorno já têm modos de sobrevivência e de produção que atendem suas necessidades.

“Se se eles vão trazer esses empregos, mas vierem contaminar o solo, contaminar as águas? Eles não vão empregar todo mundo nessa jazida, né? A nossa base realmente alimentar é agricultura familiar, do ovino e caprino, do milho e do feijão… Então o pouco que eu produzo pode vir a se comprometer, não tem como a gente viver num ambiente onde a água e o solo são contaminados. A gente vê esse projeto com muita preocupação”, comenta Luís.

Esse tipo de receio encontra eco em outros setores. Para Virginia Berriel, conselheira do CNDH, existe a confiança de que os órgãos reguladores e fiscalizadores já acionados, como Ibama e Ministério Público Federal, não verão o projeto como viável e atuarão para impedir a exploração do minério.

“O Ceará é uma região extremamente alimentada pelo sol. Para que energia nuclear, se hoje nós primamos por uma energia que não contamine, uma energia mais adequada ao meio ambiente? Então pensar em energia nuclear num estado que tanto sol (para geração de energia solar), é um negócio absurdo no nosso entendimento”, analisa a conselheira.

Para o pesquisador Jeovah Meireles, o futuro mais razoável para a região seria deixar a jazida sem exploração e apostar em políticas que incentivem a geração de renda a partir da agricultura familiar e dos saberes das comunidades locais para conviver com o semiárido.

Por Thaís Brito, g1 CE

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